
Há 50 anos, Paulo Freire dava início a seu projeto de alfabetizar 300 alunos de Angicos (RN) em 40 horas.
Via O Globo
Era um dia como outro qualquer, em 1963, quando os pais de dona Maria Eneide de Araújo Melo ouviram correr na cidade de Angicos, a 171 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, a notícia de que, ali, os adultos poderiam aprender a ler e escrever em apenas 40 horas. Era a oportunidade para quem, quase aos 30 anos, sequer sabia quantas letras eram necessárias para riscar o próprio nome. Analfabetos, como 40% da população brasileira adulta daquela época, Severino de Araújo e Francisca de Andrade Araújo pensaram: Por que não tentar? Em 18 de janeiro de 1963, o educador Paulo Freire deu início à primeira turma em que aplicaria seu método. Severino e Francisca estavam em um dos círculos de cultura, que contavam com até 15 alunos.
Quatro meses depois, o País tinha menos 300 analfabetos, graças ao trabalho conhecido como as 40 horas de Angicos que completa agora seus 50 anos. Sem ter com quem deixar a filha, Severino e Francisca levavam Maria Eneide, então com 6 anos, para as aulas. Mesmo sem ser o público-alvo do projeto, a pequena aprendeu a ler e a escrever. Antes de morrer, os pais, analfabetos até a vida adulta, viram, com orgulho, a filha virar professora.
Depois de aprender a ler e a escrever, eles fizeram questão de fazer outra identidade, em que pudessem assinar. Mesmo sendo uma aula de alfabetização, os professores incentivavam os alunos a tirarem os documentos e a conhecerem seus direitos disse Maria Eneide, que hoje tem 56 anos.
Inédito, o projeto rompeu os conceitos de alfabetização da época. Primeiro, porque se baseava na experiência de vida das pessoas. Segundo, porque um dos objetivos era dar ao aluno um espírito crítico sobre o papel do homem no mundo as duas primeiras aulas eram apenas sobre cultura. Terceiro, porque não existiam cartilhas, com lições programadas. Paulo Freire repudiava o uso do material que, segundo ele, pouco tinha a ver com a realidade do aluno.
Ele dizia que eram palavras e uma metodologia que vinha de cima para baixo. “O aluno era apenas um objeto”, disse Marcos Guerra, um dos coordenadores dos círculos de cultura onde era difundido o método de Paulo Freire, durante seminário promovido pela Fundação Roberto Marinho em comemoração aos 35 anos do Telecurso.
No método Paulo Freire, eram identificados, a partir de uma conversa, os termos que faziam parte do cotidiano da turma. Eram as chamadas palavras geradoras. A partir de uma expressão mais simples, os alunos aprendiam o que eles mesmos apelidaram carinhosamente de famílias. Assim, a partir de palavras mais simples como povo, voto ou tijolo, os adultos aprendiam as famílias silábicas. E passavam a notar que, com isso, já poderiam formar outros termos.
O significado é bem maior do que uma experiência que repercutiu fora do Brasil e é válida até hoje. É um método que desperta o desejo de continuar aprendendo o resto da vida disse o presidente do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti.
Freire foi considerado subversivo
O método agradou. A formatura da turma pioneira em Angicos, escolhida para ser a primeira a viver a experiência por ser a terra do governador do estado à época, Aluísio Alves, contou com a presença do então presidente João Goulart. O método ganhou expansão, foi exportado para outros estados e impulsionou o Programa Nacional de Alfabetização. Numa época em que analfabetos não podiam votar, o país ganhava não só mais pessoas que sabiam ler e escrever, mas também eleitores. Foi somente com a promulgação de uma emenda constitucional em 1985 que os analfabetos recuperaram o direito de votar, em caráter facultativo.
O projeto não teve vida longa. Veio o golpe militar, em 1964, e a difusão do método caiu por terra. Uma prática que ensinava aos alunos não só as letras, mas seu papel no mundo e sua importância para a sociedade não agradava aos militares. Prova disso é um trecho do Inquérito Policial Militar a que Paulo Freire respondeu durante a ditadura: “É um dos responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”, dizia o relatório de outubro de 1964.
Considerado subversivo, Paulo Freire terminou preso e exilado. Mesmo com o pouco tempo de existência, o método fez o educador ser, até hoje, um dos brasileiros mais estudados no exterior.
O Brasil ainda fala pouco de Paulo Freire. O mundo se apropriou muito mais da teoria dele. As grandes universidades norte-americanas e europeias lembram nas salas de aula, na grade curricular, a importância de Paulo Freire. Se você diz lá fora que conviveu com Paulo Freire querem tirar foto com você lembra Vilma Guimarães, gerente-geral de Educação e Implementação da Fundação Roberto Marinho, que conviveu com o educador por 40 anos e exalta o legado do amigo.
Apesar de cinquentenário, o projeto de Paulo Freire ainda é considerado atual pelos educadores: “O método não envelheceu. Continua sendo atual. Se não está sendo usado é porque não corresponde ao objetivo dos governantes”, afirmou Marcos Guerra.
Quando a experiência de Angicos completou 30 anos, Paulo Freire voltou à cidade. Reencontrou os alunos que, emocionados, agradeciam ao educador que desenvolveu a teoria que os ajudou não só a aprender as letras, mas a escrever o próprio futuro.

Paulo Freire em Angicos no 30º aniversário do projeto.
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