
Via Farofafá
Clicada em 3 de julho de 2013, a imagem parece uma versão maluca, 45 anos mais nova, da capa do disco-manifesto tropicalista, Tropicália ou Panis et Circencis, de 1968. Em vez dos jovens de outrora, enfileiram-se agora no álbum de família Carlinhos Brown, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Fafá de Belém, a presidenta da República Dilma Rousseff, Caetano Veloso, a ministra da Cultura Marta Suplicy, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ), o senador Humberto Costa (PT/PE) e Otto. Há dezenas de outros “parentes” ao redor, fora do raio de alcance da câmera do fotógrafo oficial da Presidência, Roberto Stuckert Filho.
O que a foto narra-e-oculta é o golpe mais profundo e certeiro desferido até hoje pelos titulares de direitos autorais musicais sobre a entidade que centraliza o repasse dos valores devidos pela execução pública de músicas no País, o Ecad, o sempre misterioso Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. A foto sacramentava, naquele mesmo dia 3 de julho, a aprovação sumária do Projeto de Lei do Senado nº 129, de 2012, e a promessa da presidenta de sancionar a nova lei – o que pode acontecer nos próximos dias.
Mudanças profundas surgem no horizonte para um futuro próximo, caso Dilma sancione mesmo o PLS 129. A diretoria do Ecad passará a ser composta apenas por autores, pessoas físicas, e não mais por representantes de associações dominadas por gravadoras e editoras portadoras de carteira de identidade multinacional e nomes de majors estrangeiras como Warner, EMI, Universal, Sony.
Os usuários terão de fornecer ao Ecad listas com todas as músicas utilizadas – o atual sistema de amostragem deixará de vigorar.
Cada associação terá direito a apenas um voto nas deliberações da assembleia do Ecad, o que corrigirá distorções inseridas pelo poderio econômico (na opinião de entusiastas da nova lei) ou tratará desiguais como iguais (de acordo com os defensores do modelo vigente).
A taxa administrativa reservada ao Ecad e às sociedades na fatura do bolo dos direitos autorais deve diminuir de 24,5% para 15%.
A criação de um Instituto Brasileiro de Direito Autoral (IBDA) restaurará um rombo aberto pelo presidente Fernando Collor (1990-1992), que extinguiu o órgão regulador que havia, o Conselho Nacional do Direito Autoral (CNDA), e na prática deixou que o Ecad tomasse conta sozinho, sem qualquer fiscalização externa, de um milionário galinheiro público-privado, todo forrado de ovos de ouro. Sem o CNDA, afirmam os que clamam por mudanças, o Ecad se tornou um monopólio não regulado nem fiscalizado pelo Estado.
A história por trás da aprovação do PLS 129 é eletrizante. Compreende o período de tempo relativamente curto entre a conclusão da CPI do Ecad, em abril de 2012, e o dia em que a MPB viajou a Brasília para tratorar o Congresso Nacional e os focos de resistência às mudanças no sistema, alocados nas várias associações de autores e editores que administram o escritório, tendo à frente as poderosas UBC (União Brasileira de Compositores) e Abramus (Associação Brasileira de Música).
A viagem da nave louca termina com o desembarque em Brasília de Roberto Carlos, símbolo máximo do Ecad (mas também da Rede Globo) ao longo de quatro décadas de existência. Pela primeira vez, em 3 de julho de 2013, o “Rei” da canção popular brasileira se reposicionava visivelmente num lugar que não sinalizasse um alinhamento automático com o Ecad.
Roberto ao lado de Dilma significava Roberto contra a Globo, ou Roberto ao lado de Dilma com o aval da Globo? Ou estaria Roberto se movendo por sua própria vontade, incomumente independente desses ou daqueles interesses? Mas, se assim fosse, e o Ecad, foi então rifado por seu ícone maior? São perguntas difíceis, para não dizer impossíveis, de responder em poucas (ou muitas) assopradas.
Roberto Carlos à parte, a grita pelo lado de atores acomodados em cargos de diretoria nas associações e no Ecad é grande desde os dias de aprovação do PLS 129 no Senado e, a seguir, na Câmara. Desse lado das trincheiras, diz-se que são interesses ainda mais poderosos que os do Ecad os que se insurgem contra o cartel das associações arrecadadoras. (O termo “cartel” consta de condenação determinada em março deste ano pelo Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. A multa estipulada, de R$38 milhões, atemoriza compositores e editores de dentro e de fora das estruturas de concreto do birô do direito autoral.)
Ativo militante da flexibilização do Ecad e do direito autoral, o compositor pop-rock Leoni descreve a resistência no front da conservação: “O Ecad conseguiu convencer muita gente – inclusive o ex-rebelde e ex-compositor Lobão, atualmente no papel de vovozinha – , de que houve um GOLPE patrocinado pelo PT – apesar de a CPI ter sido iniciada pelo senador Randolfe Rodrigues (AP), que é do PSOL –, pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e o Creative Commons, a Rede Globo e o Google”.
Leoni classifica a aliança imaginada pelos oponentes como “das mais estapafúrdias e improváveis”. O lado ecadiano não parece errado, no entanto, em apontar interesses contrários poderosíssimos, que passem pela Rede Globo e pelas emissoras de radiodifusão sempre às voltas com dívidas milionárias junto ao Ecad, pelas companhias telefônicas e pelos gigantes da internet. O cenário é complexo, labiríntico.
Alianças aparentemente improváveis se constroem no tique-taque das horas, como aconteceu durante a passagem da compositora Ana de Hollanda pelo Ministério da Cultura (MinC), nos primeiros 21 meses do governo Dilma. Nesse período, o Ecad se apossou de estruturas internas do MinC e fez voltar atrás uma proposta de Lei do Direito Autoral que era legado das gestões de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) na presidência da República e de Gilberto Gil (2003-2o08) e Juca Ferreira (2008-2010) no MinC, e resultante, segundo eles, de um amplo processo de debate e consulta popular. Durante a estadia da irmã de Chico Buarque no MinC, o Ecad, as Organizações Globo e a mídia tradicional de modo geral cerraram fileiras uníssonas na defesa intransigente do mandato de Ana, inclusive bloqueando quaisquer denúncias sobre aparelhamento do ministério pelo Ecad. Mesmo assim a carioca Ana caiu, em 11 de setembro de 2012, dando lugar à paulista Marta Suplicy.
No bojo da conclusão da CPI do Ecad, tomou vulto o GAP, Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música, criado e desenvolvido por compositores-militantes ancorados no Rio de Janeiro. O grupo, imaginado como instrumento de pressão junto aos poderes de Brasília, incluiu, com idas e vindas, nomes como Leoni, Ivan Lins, Sérgio Ricardo, Francis Hime, Fernanda Abreu, Frejat, Dudu Falcão, Cristina Saraiva, Tim Rescala, Jorge Vercillo, Lenine e outros. O texto do PLS começou a nascer desse caldo de cultura, com participação de advogados de direitos autorais, associações de gravadoras independentes, parlamentares e o grupo comandado na FGV por Ronaldo Lemos, figura combatida pelo Ecad como “o homem por trás dos Creative Commons“ no Brasil.
O texto original colocava a cargo do Ministério da Justiça a regulação dos direitos autorais, devido à interdição do MinC pelo grupo de Ana de Hollanda. À sua chegada, Marta Suplicy ouviu os queixosos anti-Ecad, demitiu os agentes ecadianos que ocupavam postos no setor de direitos intelectuais do ministério e reentronizou Marcos Souza, egresso das gestões Gil-Juca. Nesse processo, o PLS 129 caiu de volta no colo do MinC, e a ministra Marta colocou em circuito uma figura que se tornaria crucial dali por diante: Paula Lavigne.
Ex-esposa e ainda empresária de Caetano Veloso, Paula ligou o compositor baiano na tomada, e ele passou a escrever artigos de dúvida sobre o Ecad em sua coluna no jornal O Globo. A panela entrou em ebulição e culminou em reuniões acaloradas em três residências-símbolo: a de Paula Lavigne, a de Roberto Carlos e a de um discreto Gilberto Gil. Os nomes envolvidos contam-se às dezenas, entre eles, por ordem alfabética, Antônio Cícero, Antônio Villeroy, Carlinhos Brown, Chico Buarque, Djavan, Emicida, Fernanda Abreu, Frejat, Gaby Amarantos, Jorge Mautner, Maria Gadú, Marisa Monte, Péricles, Pretinho da Serrinha, Rogério Flausino (do Jota Quest), Thiaguinho, empresários e/ou representantes de Milton Nascimento, Paralamas do Sucesso, Racionais MC’s etc.
“A entrada da empresária Paula Lavigne na questão e a consequente criação do grupo Procure Saber foram responsáveis por uma mudança decisiva no nosso movimento de mudança da lei”, afirma Tim Rescala, compositor de trilhas sonoras com largo rol de serviços prestados à Rede Globo. “Mas é preciso lembrar que um dos integrantes do conselho do Procure Saber é Gilberto Gil, justamente quem começou todo esse movimento de discussão da lei do direito autoral quando foi ministro. Agora temos uma força maior, unindo GAP, Procure Saber, Sindicato dos Músicos do Rio de Janeiro, o Grita do Sérgio Ricardo, a Musimagem Brasil, ou seja, várias entidades que querem a mesma coisa: uma mudança profunda na gestão coletiva.”
Algo novo acontecia aqui: o Procure Saber nascia com jeitão de futura associação disposta a escancarar as portas sempre trancadas do Ecad (ou seria somente de tomar o lugar de poder dos antigos diretores?). Soa eloquente a definição de Leoni sobre o que é o Procure Saber: “Uma associação de classe de autores e intérpretes, ainda em formação, capitaneada pela energia produtiva de Paula Lavigne e respaldada pela diretoria composta por Roberto Carlos, Caetano, Gil, Chico Buarque, Djavan, Erasmo Carlos e Milton Nascimento”. Uau.
O Ecad passou a tremer na base diante de um acúmulo de forças até então inédito nas fileiras de resistência à chamada “caixa-preta” do birô. A contragosto, foram enviados às reuniões do Procure Saber compositores que são também diretores de associações e costumam se encarregar da defesa ferrenha do sistema: Fernando Brant (da UBC), Walter Franco e Danilo Caymmi (Abramus), além da diretora-executiva da UBC, a advogada Marisa Gandelman.
Da porta para dentro das reuniões, houve fervuras e frituras, que FAROFAFÁ espera descrever em reportagens que virão a seguir. Da porta para fora, Paula Lavigne virou (se já não era) a inimiga número 1 dos pró-Ecad. Ela foi o alvo central, por exemplo, de um texto atribuído a Fernando Brant, autor de letras clássicas cantadas por Milton Nascimento e Elis Regina (“Travessia”, “Conversando no Bar”, “Ponta de Areia”, “Maria, Maria”, “Canção da América” e “Nos Bailes da Vida”), que classifica como golpe a aprovação do PLS 129. (Conversas de publicação não-autorizada à parte, Farofafá não conseguiu até aqui nenhum depoimento oficial de compositor ou diretor ligado às associações.)
Deixemos de banda o fato de que Paula Lavigne deve agir em nome dos artistas que representa (além de Caetano, ela tem trabalhado com Racionais MC’s, Seu Jorge, Criolo e Emicida). O lado capitaneado por Fernando Brant põe em xeque as ligações entre a empresária musical (e cinematográfica) e as Organizações Globo. É fato que Paula agiu como intermediadora entre o conglomerado e os artistas. “A Globo queria modificações que não conseguiu emplacar. A rede foi ouvida pela Paula, que trazia suas propostas para nós”, conta Leoni. Ele traz impressão que provavelmente seria compartilhada por qualquer um de nós que não temos acesso às cúpulas: “A questão Globo foi muito complicada para nós. Até hoje não entendo direito a posição dela nessa história”.
golpe ou não- golpe, poucos de nós conseguem entender com clareza as transformações que estão em curso. As insinuações de Brant sustentam que o movimento se aproveitou da onda de protestos Brasil afora, com auge imediatamente anterior à data previamente marcada do 3 de julho. Por sorte ou senso de oportunidade, o panteão emepebista que causou frisson no Congresso Nacional e até mesmo no gabinete da presidência da República viu seus pleitos aprovados em tempo recorde a bordo de um momento histórico em que senadores e deputados se mostravam especialmente sensíveis a apelos, digamos, populares.
Houve algum golpe, ou estamos diante do rito democrático corriqueiro, gostem ou não do resultado esses ou aqueles? É preciso admitir a ousadia de Fernando Brant em referir-se a um GOLPE, uma vez que no rol de golpistas se enfileirariam então nomes tão célebres quanto Caetano Veloso e Roberto Carlos, Chico Buarque e Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Gilberto Gil.
Uma dúvida que não se ergue (ao menos em público) nem de um lado nem do outro é se estamos diante de mais um levante de cúpula, de cima para baixo, ou se os processos que resultarão da aprovação do PLS 129 significarão uma real democratização no trato com o direito autoral no Brasil. A favor da segunda possibilidade conta a presença, em Brasília, de atores musicais tão variados quanto Gaby Amarantos e Roberta Miranda, Jorge Vercillo e Alexandre Pires, Nando Reis e Emicida. A foto à direita, do rapper paulistano com Roberto Carlos, fica como registro de esperança de que jovens e periféricos estivessem tomando posse de Brasília de fato e de direito, e não apenas para fazer número ao lado dos velhos mestres de sempre.
(Esta história não se esgota aqui, ao contrário: como diz Tim Rescala, “muito mais virá adiante”. Agora hospedado nos domínios da CartaCapital, Farofafá voltará à carga nos próximos dias e acompanhará de perto os desdobramentos dos diversos despertares do “gigante”.)
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