Gostaríamos muito de explorar a Amazônia junto com os EUA, diz Bolsonaro a Al Gore em filme sobre Davos

O idealizador do encontro de Davos, Klaus Schwab, e o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em cena do documentário O Fórum, dirigido pelo alemão Marcus Vetter. Foto: Divulgação.

Documentário de bastidores do Fórum Econômico Mundial mostra presidente brasileiro isolado: “Ninguém queria ficar perto do Bolsonaro”, afirma diretor de filme.

Naief Haddad, via Folha em 14/8/2020

Se existisse uma competição para escolher o momento mais patético da política internacional recente, 90 segundos do documentário O Fórum seriam um candidato difícil de ser vencido.

Dirigido pelo alemão Marcus Vetter, o filme estreia na quinta [20/8] em diversas plataformas de streaming no Brasil.

Num coquetel do Fórum Econômico Mundial em janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, parecem um tanto sem jeito no meio de um salão repleto de políticos de alto escalão, líderes de organizações civis e grandes empresários.

Democrata e ex-vice-presidente dos EUA na gestão Bill Clinton (1993 a 2001), Al Gore se aproxima de Bolsonaro para falar sobre a Amazônia – como se sabe, o americano é hoje um influente ativista ambiental.

“Sou um grande amigo de Alfredo Sirkis”, diz Gore ao presidente brasileiro. Mesmo com a intervenção do tradutor, Bolsonaro não entende. “Sirkis!”, repete Araújo, referindo-se ao ambientalista carioca que morreu num acidente no mês passado.

O presidente sorri discretamente. “Lá atrás, fui inimigo do Sirkis na luta armada”, diz. Gore demonstra surpresa: “Oh, eu não sabia. Então falei para a pessoa errada”.

“Não tem problema”, responde o brasileiro, tentando desfazer um certo mal-estar. “A história recém-passada dos militares no Brasil é muito mal contada. A verdade sempre aparece.”

O americano vai, então, ao ponto que o interessa: “Estamos todos muito preocupados com a Amazônia. Lamento trazer isso numa conversa informal, mas é que esse assunto me toca profundamente”.

Araújo apenas observa. Bolsonaro tenta manter o tom afável e, num misto de constrangimento e insegurança, parece medir cada palavra em frases curtas. “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaríamos muito de explorá-las junto com os EUA.”

O tradutor converte corretamente as palavras para o inglês, mas isso não é o bastante para Gore compreender o brasileiro. Escapa ao americano o sentido daquilo. “Não entendi muito bem o que quis dizer”, afirma.

“Eu gosto muito do povo americano. O Brasil elegeu um presidente que gosta dos EUA. A Amazônia pode ser solução para o mundo”, diz Bolsonaro. E arremata: “Conheço o senhor, não somos inimigos. Precisamos conversar”.

“Estou sempre disposto a conversar. Obrigado”, conclui Al Gore. “Sim, senhor”, responde o brasileiro.

Pelas platitudes sobre a Amazônia, as frases desconexas e a lembrança inconveniente da luta armada, Bolsonaro – que concordou que os diálogos fossem gravados – não surpreende quem não gosta dele.

O mais curioso, porém, é que a conversa com Al Gore talvez decepcione seus seguidores mais fiéis que irão vê-lo tratar um ecologista e democrata, categorias demonizadas pelos olavistas, num tom tão manso, quase subserviente.

Com quase duas horas, o documentário vai muito além da participação de Bolsonaro. Mostra os bastidores das edições de 2018 e 2019 do Fórum, que acontece todo mês de janeiro na pequena cidade de Davos, nos Alpes suíços. Para o público brasileiro, no entanto, nenhum trecho é tão revelador quanto esse diálogo.

“Bolsonaro me passou impressão semelhante à que tive com Donald Trump. Os participantes do coquetel o evitavam e o observavam como um alienígena”, diz à Folha o cineasta Marcus Vetter.

“Mas não importa o que eu pense sobre Bolsonaro, mais importante é mostrar essa situação como um sinal dos tempos. Esse é o papel dos documentários: deixar que o público tire suas conclusões.”

Houve um caminho longo para que a equipe de filmagens tivesse acesso a reuniões e encontros de Davos normalmente fechados para a imprensa.

Em 2015, o produtor Christian Beetz teve a primeira conversa sobre o projeto com Klaus Schwab, o economista e engenheiro alemão que fundou em 1971 o Fórum, organização até hoje liderada por ele.

Dois anos depois, o produtor convidou Vetter para dirigir o filme, baseado na experiência do cineasta em documentários sobre organizações que envolvem dezenas de países, como The International Criminal Court (2013), a respeito do funcionamento do Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda.

Figura central do filme, Schwab é retratado como um homem bem-intencionado e conciliador, alguém empenhado em juntar líderes de visões opostas, como aconteceu em 2001, com o então presidente da ANP (Autoridade Nacional Palestina), Iasser Arafat, e o ex-primeiro-ministro de Israel Shimon Peres.

Mas o documentário evita o tom laudatório ao explorar ambiguidades do trabalho de Schwab. O fundador do Fórum não esconde o desconforto diante de uma pergunta dura do diretor sobre a relação da instituição com a Monsanto, empresa condenada nos EUA pelos efeitos danosos à saúde humana de um dos seus pesticidas.

Por outro lado, Vetter diz que se surpreendeu ao longo das filmagens ao perceber que a instituição “está realmente tentando buscar um acordo verde, não se trata apenas de dinheiro” – segundo o cineasta alemão, seu filme não recebeu um tostão da organização de Schwab; foi financiado por emissoras de TV e fundos de cinema da Europa.

A câmera de Vetter vai a Ruanda mostrar um projeto de jovens empreendedores que, bancados pelo Fórum, criaram uma rede de drones que levam sangue para grande parte dos hospitais do país. E também acompanha uma reunião em Davos em que o presidente-executivo da SAP, empresa de softwares com sede na Alemanha, adula Trump de modo vergonhoso.

No intervalo de poucos minutos, surgem a nobreza e o oportunismo, ambos amparados pelo Fórum. O documentário se desenvolve a partir de ambivalências, longe de maniqueísmos, mesmo em relação à presença brasileira.

A conversa entre Bolsonaro e Al Gore aparece na meia hora final, logo após uma cena em que Schwab dialoga com a líder do líder do Greenpeace Jennifer Morgan e revela a ela preocupação com a postura antiambientalista do presidente.

Bem antes, no início do documentário, Schwab lembra outro brasileiro. Fala da participação histórica de dom Hélder Câmara (1909-1999) na edição de 1973, à época chamado de Fórum de Gestão Europeu.

Pela primeira vez, a reunião anual chamava a atenção para alguém fora das cúpulas econômicas e políticas. O discurso do arcebispo, com críticas às multinacionais, levou alguns empresários a se afastar da instituição. A participação de dom Hélder “foi um teste crucial na história do Fórum. Será que deveríamos cancelar tudo? Ou nos ater aos nosso valores?”, questiona Schwab.

Aos 82, ele ainda crê no diálogo entre visões diferentes. Valeu a pena? Ao fim do filme, o espectador poderá dizer.

***

COMO O VÍDEO ACABA COM BOLSONARO
Moisés Mendes em 26/8/2020

Algumas constatações sobre o patético vídeo em que Bolsonaro tentou conversar com Al Gore, no ano passado, no Fórum de Davos (o link para o vídeo está no final desse texto).

1) Fica claro que é Al Gore quem se aproxima de Bolsonaro, e o diretor do documentário O Fórum, o alemão Marcus Vetter, já confirmou que foi o que aconteceu. A aproximação repentina perturbou o sujeito, que não estava preparado.

2) Al Gore provoca Bolsonaro ao dizer, de cara, que é amigo de Alfredo Sirkis, inimigo da ditadura. E logo depois provoca de novo ao falar da Amazônia como preocupação.

3) Ernesto Araujo, que momentos antes recolhia algo do chão, como se ele e Bolsonaro estivessem perdidos no coquetel, corrige a pronúncia de Al Gore para o sobrenome de Sirkis. Al Gore fala Sírkis, com Sir como sílaba tônica, e Araujo corrige para dar ênfase ao kis. É como se Araujo precisasse traduzir o nome certo para Bolsonaro, ou ele poderia confundir com outra pessoa… Foi uma grosseria com Al Gore, cometida pelo homem da diplomacia.

4) Quando Bolsonaro mente e dá a entender que enfrentou Sirkis na luta armada, Al Gore lança duas frases que expressam desprezo. Diz que não sabia disso (ou seja, sabia quem era Sirkis, mas não sabia quem era Bolsonaro). E depois emenda, com ironia: então falei sobre a pessoa errada.

5) Bolsonaro diz que a história “recém passada do Brasil dos militares” foi mal contada, mas que a verdade sempre aparece. Interessante o detalhe do “Brasil dos militares”.

6) Al Gore desconversa e põe a Amazônia na conversa, ou seja, ele conduz a pauta.

7)Bolsonaro vem com a frase colegial: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas”. E completa com a maior bobagem do vídeo, quando diz que “gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.

8) Al Gore diz não entender o que Bolsonaro quis dizer, ou seja, entendeu muito bem e debochou da ideia do outro.

9) Parece que o vídeo foi cortado logo depois, quando Bolsonaro salta para uma declaração de amor ao povo americano e a Trump. Por que Bolsonaro não esclarece o que Al Gore diz não entender? Ou Bolsonaro se fez de bobo?

10) Bolsonaro divulgou o vídeo como se fosse obter algum ganho. O que ele mesmo expõe é um sujeito inseguro dizendo bobagens que, soletradas, parecem estar num teleprompter. O vídeo – tirado do documentário O Fórum, do alemão Marcus Vetter – é uma porrada na boca de Bolsonaro.

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