Leonardo Sakamoto em 19/7/2020
Abordado pela guarda civil de Santos, o desembargador Eduardo Siqueira se negou a colocar máscara, obrigatória por decreto, tripudiou o agente de segurança, tentou dar carteirada para não ser multado, ligou para o secretário de Segurança do município para que o gestor colocasse o “analfabeto” do servidor público no seu devido lugar, rasgou a multa e jogou no chão. Sim, pediu o combo bizarro completo.
Não é a primeira vez que o magistrado comete a mesma infração. Nunca é.
A pandemia tem gerado um rosário de cenas como essa, protagonizadas por semoventes que acreditam estarem acima dos demais por contarem com mais dígitos em suas contas bancárias ou com um cargo luminoso pago pelo contribuinte.
Como já disse aqui anteriormente, isso é parte do esgoto que já corria, mas Bolsonaro tornou orgulhoso de si. E por conta de um presidente da República que prega que prefeitos e governadores não têm o direito de tolher a “liberdade” das pessoas na pandemia, pessoas como o desembargador sentem-se no direito de relinchar contra quem está garantindo as medidas de saúde pública.
O indefectível “você sabe com quem está falando?” fede mais quando vem de servidores que prometeram defender o bem coletivo.
Sim, o “Estou aqui com um analfabeto” e o “Você sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo”, de Eduardo Siqueira ligando para o secretário de segurança do município para mostrar que faz e arrebenta, é pior do que o “cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”, do casal que destratou um fiscal da vigilância sanitária, na Barra da Tijuca, no Rio.
O guarda civil não era analfabeto, mas isso foi usado como xingamento pelo desembargador.
Ser analfabeto diz mais sobre a incompetência de uma sociedade e de um Estado em garantir condições dignas do que da falta de mérito de uma pessoa. Ao usar o termo como xingamento, portanto, imagina-se como o magistrado deve lidar com casos que chegam às suas mãos envolvendo iletrados em disputa com doutores. Com uma lacuna na formação representando uma falha de caráter.
Burrice, como já disse aqui, não é a falta de um conhecimento específico ou separar sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza os outros por não compartilharem dos mesmos padrões de fala, do mesmo conhecimento técnico ou do mesmo universo simbólico.
Burrice é, na verdade, encarar preconceitos violentos como sabedoria. A burrice é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa ao outro. Burrice, aliás, não pede desculpa. Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de um outro indivíduo ou do coletivo.
Burrice não aceita a existência de qualquer fato que vá na direção contrária de sua convicção. Diante de denúncias ou críticas baseadas em fatos e leis, brada que isso é falso por não admitir o conteúdo. E a burrice, como manifestação da negação, avança quando há governantes, parlamentares e magistrados que acham possível construir uma sociedade melhor e mais justa jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre seus erros e acertos. O certo é o que eu acho certo, independentemente do resto.
Tanto quanto a pandemia, a burrice violenta viraliza orgulhosa nestes dias. Exemplos como o do desembargador que ganham o debate público deveriam servir para dissuadir quem se sente acima dos outros. Mas, ao que tudo indica, acabam servindo como inspiração.
Em tempo: Ironicamente, Siqueira coordenou a área de Saúde do Tribunal de Justiça de São Paulo.
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TJ/SP E CORREGEDORIA NACIONAL VÃO INVESTIGAR DESEMBARGADOR SEM MÁSCARA QUE RASGOU MULTA E CHAMOU POLICIAL DE “ANALFABETO”
Desembargador do TJ/SP foi filmado pela GCM em abordagem em Santos (SP). Sem máscara, Siqueira se negou a receber multa, rasgou papel e desprezou guarda. TJ/SP diz não compactuar com desrespeito; prefeitura repudia atitude do desembargador. Corregedoria do CNJ afirma que vai apurar ocorrido e dá prazo para Siqueira se manifestar.
Aiuri Rebello e Bruno Madrid, via UOL em 19/7/2020
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o TJ/SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) informaram hoje, por meio de notas, que vão apurar a conduta do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira após ele recusar-se a usar máscara na rua em Santos (SP), rasgar a multa que recebeu e intimidar o guarda municipal que o abordou.
Para o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, o vídeo demonstra indícios de possível violação aos preceitos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e ao Código de Ética da Magistratura que impõem a necessidade de averiguação pela Corregedoria Nacional de Justiça, afirma o CNJ. O desembargador terá 15 dias para responder ao corregedor nacional sobre os fatos expostos.
Já o TJ/SP observou que “determinou imediata instauração de procedimento de apuração dos fatos”, afirma a nota assinada pelo presidente do tribunal, Geraldo Francisco Pinheiro Franco.
Franco diz que ter requisitado a gravação original e que ouvirá, com a máxima brevidade, os guardas e o magistrado.
Siqueira foi filmado confrontando a GCM (Guarda Civil Municipal) de Santos, no litoral paulista, neste final de semana. O fato aconteceu durante uma abordagem pelo fato de ele, que caminhava na orla da praia na cidade, recusar-se a usar máscara.
O uso do equipamento de proteção contra o coronavírus é obrigatório na cidade por meio do decreto nº 8.944, de 23 de abril de 2020, assinado pelo prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB). Descumprir a medida gera multa de R$100,00.
Siqueira já havia sido multado por não usar máscara
A prefeitura de Santos se manifestou sobre o ocorrido por meio de uma nota de repúdio e afirmou que não é a primeira vez que o desembargador é multado pela rejeição ao uso de máscara.
“Trata-se de um caso de reincidência: o mesmo cidadão já foi multado em outra data por cometer a mesma infração. O secretário de Segurança de Santos, Sérgio Del Bel, deu total apoio à equipe que fez a abordagem e a multa foi lavrada na tarde deste sábado [18/7]. O cidadão também foi multado por jogar lixo no chão”, informou a prefeitura.
“A Prefeitura de Santos é veementemente contra qualquer ato de abuso de poder e, por meio do comando da GMC, dá total respaldo ao efetivo que atua na proteção do bem público e dos cidadãos de Santos”, completou o órgão municipal.
Desembargador coordenou área de saúde de tribunal
Siqueira é ex-coordenador da SAS (Secretaria da Área de Saúde) do TJ/SP. Questionada, a assessoria de imprensa do tribunal não informou em qual ano ele assumiu o cargo, mas em 2018 ele deixou a função.
O magistrado assumiu como desembargador no TJ/SP em 2008. O caso vem repercutindo desde a manhã de hoje, e o termo “desembargador” chegou a ser um dos mais comentados do Twitter no Brasil.
A reportagem do UOL ofereceu ao TJ espaço para o desembargador se manifestar a respeito do ocorrido e até o momento não obteve resposta de Siqueira.
Desembargador chamou guarda de analfabeto
Nas imagens, que circulam em redes sociais, Siqueira é abordado por um homem da GCM, que pede “por favor” para ele colocar uma máscara. O desembargador é informado sobre o decreto, mas diz que o ato “não é lei” e se recusa.
O guarda, então, desce do carro para aplicar a multa. Siqueira afirma que já havia recebido uma infração: “Amassei e joguei na cara dele. Você quer que eu jogue na sua também?”, questiona.
Na filmagem, indignado ao ver que o guarda está executando a punição, Siqueira pega o celular e diz ligar para o secretário de Segurança de Santos, Sérgio Del Bel. Ao perceber que está sendo filmado, ele sorri e dá um sinal positivo para a câmera da GCM.
Durante o telefonema, ele diz que está “com um analfabeto” e alega que está sozinho na faixa de areia. Eduardo tenta passar o telefone ao guarda, que recusa.
Tribunal diz não compactuar com atitude de desrespeito
No comunicado divulgado na tarde desde domingo, o TJ/SP afirma que “não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas”. “Muito pelo contrário, notadamente em momento de grave combate à pandemia instalada, segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos”, diz a nota da assessoria de imprensa.
Segundo o TJ/SP, o desembargador, a princípio, pode ter desrespeitado várias normas às quais está sujeito além do decreto municipal sobre o uso de máscaras, como uma resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), um decreto estadual, e uma decisão do próprio tribunal.
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