Reinaldo Azevedo em 15/7/2020
É mesmo do balacobaco!
A Advocacia Geral da União fez a coisa certa, conforme aqui se cobrou tantas vezes, e recorreu ao Supremo Tribunal Federal para impedir que a juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, distribua recursos oriundos de acordos de leniência a seu gosto. Ou ao gosto da Lava-Jato, de quem parece não se distinguir – e é uma aberração se assim for. No caso, como ela é uma pessoa boa, né?, queria destinar uma dinheirama ao combate à pandemia. Abaixo, em grifo, segue matéria de terça [14/7] no Jornal Nacional. Comento em seguida.
A decisão da força-tarefa da Lava-Jato de oferecer R$500 milhões ao governo para o combate à pandemia levou a Advocacia Geral da União a acionar o Supremo Tribunal Federal.
Esperem! Quem está oferecendo o dinheiro que não lhe pertence? A Lava-Jato ou a juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba? Ou a mistura ilegal entre a Vara e a força-tarefa já está sendo admitida como um dado da realidade, a exemplo do que ocorria nos tempos de Sérgio Moro, conforme evidenciou a Vaza-Jato? Mesmo assim, pergunto:
– se fosse a Lava-Jato, ela tem autonomia para decidir a destinação de dinheiro?;
– a Lava-Jato é um ente independente do Ministério Público Federal?;
– tal doação seria feita com base em que texto legal? Ou dane-se a lei?
A destinação do dinheiro virou um embate jurídico. São mais de R$500 milhões: dinheiro que empresas pagaram em multas estabelecidas em acordos de leniência – uma espécie de delação premiada de empresas.
Só há embate jurídico porque alguém decidiu desrespeitar a lei. Por lei, os recursos amealhados em acordos de leniência pertencem à União.
O Jornal Nacional revelou, na semana passada, que a juíza Gabriela Hardt havia feito a oferta um mês antes, e que o Ministério da Saúde só aceitou o dinheiro no dia seguinte à reportagem, 7 de julho.
Não entendi. Então foi a juíza Gabriela Hardt que ofereceu o dinheiro, não a Lava-Jato. Ou se deve considerar que são uma coisa só? Se forem, como é que a juíza pode julgar alguma coisa que nasce de uma denúncia do grupo ao qual ela pertence? Mesmo assim, pergunto:
– se é a juíza a oferecer o dinheiro, ela tem autonomia para isso?;
– a 13ª Vara Federal de Curitiba é um ente autônomo, que não deve satisfações nem à Justiça?;
– tal doação seria feita com base em que texto legal? Ou dane-se a lei?
Se o Ministério da Saúde aceitou o dinheiro, ele o fez também na ausência de lei. Não me estranha, claro!, dado o perfil dos valentes que lá estão.
Na segunda-feira [13/7], uma mudança de rumo. O governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal para impedir que a Justiça tenha o poder de decidir a destinação dos recursos. O entendimento é que a Lava-Jato tem que repassar o valor à União, e não pode dizer onde o dinheiro deve ser gasto.
Finalmente uma decisão sensata. Não se quer impedir que “a Justiça tenha o poder de decidir a destinação de recursos”. Ela já não tem o poder de decidir a destinação de recursos. Ou me apontem o texto legal que lhe confere tal competência.
O advogado-geral da União, José Levi, afirmou que “nada impede que as verbas sejam utilizadas para o combate à pandemia. Essa decisão não é do juízo”. Que “coloca-se, assim, na posição de gestor de verbas públicas”.
Não poderia ser mais preciso. Parabéns ao doutor José Levi por isso! Ou alguém ousa contestá-lo? Sendo o caso, quero que citem o texto legal a prever que uma vara federal é agora gestora de recursos públicos. Quer dizer que, se quisesse, poderia doar, sei lá, para comprar trator para assentados? Ou comida para os famintos? Por que o combate à pandemia? Seria porque rende prestígio e notícia? De resto, não faltam recursos ao Ministério da Saúde. Falta apenas competência. Dos R$40 bilhões do Orçamento reservados ao combate à pandemia, gastou-se menos de um quarto.
A juíza substituta da Lava-Jato em Curitiba, Gabriela Hardt, se baseou em uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça e em uma orientação da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região, que priorizam a reversão das multas para o combate à pandemia.
No que diz respeito a CNJ, suponho que a reportagem se refira ao Artigo 9º da Resolução 313, de 19 de março de 2020. Eu o transcrevo aqui:
Art. 9º Os tribunais deverão disciplinar a destinação dos recursos provenientes do cumprimento de pena de prestação pecuniária, transação penal e suspensão condicional do processo nas ações criminais, priorizando a aquisição de materiais e equipamentos médicos necessários ao combate da pandemia covid-19, a serem utilizados pelos profissionais da saúde.
Como se nota, o texto não trata de recursos oriundos de acordos de leniência. Ainda assim, como se vê, o texto ficou frouxo, reconheça-se. Um juiz meio doido poderia sair por aí tentando comprar cloroquina, né? De toda sorte, como resta óbvio, o trecho da resolução não autoriza a doutora a doar dinheiro nenhum. De resto, ela não doa ao Tesouro o que já é do Tesouro.
Quanto à recomendação da Corregedoria de uma Vara Federal… Bem, a justificativa nem errada consegue ser de tão absurda. Desde quando uma repartição de uma vara federal decide o destino de um dinheiro que pertence à União.
Eis a comprovação de que a juíza – também entendida como Lava-Jato (!?!?!?), não se ancorou em lei nenhuma.
A AGU diz que a juíza ampliou o uso de uma norma que não vale para multas decorrentes de acordo de leniência, e que decisões anteriores do STF mostram que esse tipo de recurso deve ser cedido à União, sem carimbo de destinação específica.
A AGU está certíssima, como demonstro acima. A resolução do CNJ não vale mesmo para recursos oriundos de acordos de leniência. E, bem…, não é que o STF tenha decidido que esse dinheiro pertence à União. Esse dinheiro pertence à União antes de qualquer decisão!
Doutora Hardt, também chamada de “Lava-Jato” (!?!?!?), já tinha homologado aquele acordo pornográfico que destinava multa da Petrobras para a criação de uma fundação de direito privado. A PGR recorreu contra a patuscada, e o Supremo suspendeu o arranjo.
A Advocacia Geral da União também quer proibir que juízes e integrantes do Ministério Público indiquem a destinação de multas. Até sair a decisão, o Ministério da Saúde não poderá usar os mais de R$500 milhões. Se o governo ganhar no Supremo, poderá decidir usar o dinheiro para outra finalidade.
Pela ordem:
1) os juízes só não são proibidos de usar o dinheiro porque nem se cuida disso. Servidor público só faz o que a lei prevê. Como não há lei nenhuma que preveja que juiz se transforme em gestor de recursos da União, então não é certo dizer que eles têm de ser proibidos de fazê-lo. Inexiste lei que preveja tal licença.
2) O mesmo vale para o Ministério Público.
3) O Ministério da Saúde não precisa desses R$500 milhões. Ele conta, em números arredondados, com R$28 bilhões que estão no Orçamento e ainda não foram gastos – 48 vezes o valor da, digamos, generosa oferta da juíza, também chamada aqui de “Lava-Jato”…
4) E, sim, o correto é que o dinheiro seja usado segundo as prioridades da União. E a covid-19 não é a única. Quem disse que essa grana nasceu carimbada? Se for destinada ao combate ao câncer, a finalidade é menos nobre?
5) A juíza Gabriela Hardt, vulgo “Lava-Jato” neste texto, agora decide as prioridades dos gastos federais?
O pedido da AGU foi feito numa ação apresentada pelo PT e PDT. Os partidos defendem que cabe à União destinar valores referentes a restituições, multas e sanções. O relator é o ministro Alexandre de Moraes, mas como o Supremo está em recesso, o ministro Dias Toffoli, presidente do STF, pode decidir sobre o tema.
Os partidos não “defendem”; eles apenas lembram o que está na lei. Ou existe algum outro entendimento sobre a quem cabe destinar tais recursos, e eu, sempre atento a essas coisas, nem me dei conta? Suponho que a decisão do ministro será a que já tomou no caso daquela absurda fundação. Aliás, parece que o que se busca é um título, não? “Moraes impede que Lava-Jato doe R$500 milhões para combater pandemia”. Que homem mau! E como são bons os procuradores da Lava-Jato, vulgo “juíza Gabriela Hardt”…
Em nota, a força-tarefa de Curitiba disse que houve um entendimento prévio entre o Ministério Público Federal, a Controladoria Geral da União e a própria AGU para que os recursos arrecadados em acordos de leniência firmados com os três órgãos, e depositados em contas judiciais, pudessem ser destinados prioritariamente para o combate ao coronavírus; que a Petrobras não se opôs à antecipação proposta para o combate ao coronavírus; e que as ações da AGU causaram surpresa diante do entendimento prévio.
Como? A juíza Gabriela Hardt é que faria a doação, mas quem emite nota é a força-tarefa de Curitiba? Então a força-tarefa negociou com a CGU e com a própria AGU – suponho que existam documentos decorrentes dessa negociação –, e a juíza homologou um acordo sobre recursos que pertencem à União?
Bem, o passo seguinte, agora, é conhecer os termos do acordo obviamente ilegal porque celebrado, se existiu, com base em lei nenhuma. Quem, na AGU, chancelou o acordo? E na CGU? Com base em qual disposição legal?
Encerro
1) A Lava-Jato não é gestora de recursos da União.
2) A 13ª Vara Federal não é gestora de recursos da União.
3) Ainda que tivesse mesmo existindo o tal entendimento, todos estariam operando fora da lei.
4) Reparem que nem mesmo se fala em Procuradoria Geral da República, como se a força-tarefa tivesse tomado o seu lugar e falasse pelo Ministério Público Federal.
5) Se Gabriela Hardt e Lava-Jato são sinônimos, a juíza tem de deixar imediatamente a 13ª Vara Federal de Curitiba, e alguém com independência e autonomia tem de ser designado para o seu lugar. Ou perdi alguma coisa? Ou, agora, quem julga não se distingue mais de quem acusa?
Um pouco mais de decoro, por favor!
16 de julho de 2020 às 16:32
“A ignorância é audaciosa”.