Leonardo Sakamoto em 13/7/2020
O presidente do Superior Tribunal de Justiça, que quer ser indicado por Jair Bolsonaro para a Suprema Corte, autorizou que uma foragida fosse para a prisão domiciliar sob a justificativa de que seu marido, Fabrício Queiroz, que também ganhou o benefício, precisava de cuidados durante a pandemia por conta do tratamento de um câncer.
Com ambos de volta para casa, João Otávio de Noronha desarmou momentaneamente uma potencial delação de Márcia Aguiar, acusada de participar dos esquemas operados por Queiroz de desvios de recursos públicos de servidores dos gabinetes da família Bolsonaro.
Uma história como essa pode dar a impressão de que as instituições não estão funcionando normalmente no Brasil. Mas é o contrário: isso é a prova de que elas estão.
É que existe uma percepção equivocada de que elas são programadas para tratar todos como iguais. Bobagem. Funcionam rápido e bem para quem tem dinheiro, poder e amigos. O resto, que pegue uma senha e passe nervoso na fila do aplicativo da Caixa para o auxílio emergencial.
Esse “bom funcionamento” foi visto quando o próprio ministro Noronha concedeu o pedido de habeas corpus de Queiroz e Márcia Aguiar, mas disse não a outros que tinham a mesma justificativa, ou seja, questões de saúde. E quando magistrados de todo o Brasil – da primeira instância ao STF – deixaram pessoas morrerem ao negarem solicitações de transferência para a prisão domiciliar de idosos ou imunodeprimidos.
Isso choca porque estamos em uma pandemia. Mas o rigor com os mais pobres e a seletividade são recorrentes. Por exemplo, quando Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Ou quando Franciely foi acusada de roubo de duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado. Ou quando Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado – perdeu um olho enquanto estava presa. Ou quando Sueli foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja. Ou quando Rafael Braga foi preso durante as manifestações de junho de 2013 pela acusação de portar artefato explosivo – carregava, na verdade, Pinho Sol.
O fato de as prisões serem de maioria negra e pobre como sintoma do racismo institucional brasileiro não é novidade. A Justiça tem pesos diferentes a depender da classe social, tamanho da conta bancária, cor de pele, origem étnica, idade, gênero e orientação sexual dos envolvidos. O que choca é a cara de pau, com o STJ tascando uma dessas na nossa cara, assim, na lata.
Mas, justiça seja feita, isso não envolve apenas a Justiça. No Brasil do “cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”, as mesmas coisas têm nomes diferentes. Depende de quem fala e sobre quem se fala.
Construímos um país em que “manifestantes” são aqueles que fecham avenidas para lutar por algo com o qual a elite concorda e “baderneiros” são aqueles que fazem o mesmo por algo sobre o qual ela discorda. No qual rico que deixa de pagar milhões em impostos está apenas “exercendo seu protesto contra a pesada carga tributária” ou “adaptando o cronograma de desembolsos de sua amortização de débitos à realidade de seu caixa”. Mas quando ocorre com o pobre, ele é o “caloteiro”, o “vagabundo”, o “aproveitador” que não pagou a mensalidade do carnê da geladeira porque foi demitido.
Qualquer rico ou pobre em prisão preventiva, que esteja em situação de risco na pandemia por suas condições de saúde, deveria ter direito a um habeas corpus para ir à prisão domiciliar. Mas quando a Justiça recebe pedidos semelhantes e diz “sim” para o de Fabrício Queiroz e Marcia Aguiar porque viam nele “direitos”, mas fala “não” para o de pobres porque enxergavam nele “privilégios”, precisamos urgentemente refundar um país.
O Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) solicitou, na sexta [11/7], um habeas corpus coletivo para estender a outros presos o que foi concedido a Queiroz, como esta coluna noticiou. Uma resposta negativa de Noronha vai escrachar, mais uma vez, as preferências da Justiça brasileira.
Em 2018, o mesmo coletivo obteve no STF um HC coletivo para a transferência à prisão domiciliar de mulheres grávidas ou mães de crianças até 12 anos que estavam em preventiva. Citaram como referência o benefício concedido a Adriana Ancelmo, então companheira do ex-governador Sérgio Cabral. Apesar de milhares de mulheres terem sido soltas, outras tantas permanecem presas por negativa de magistrados.
Por que as instituições estão funcionando normalmente. Daquele jeito brasileiro, torto, injusto, orgulhoso de si mesmo.
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DECISÃO PRÓ-QUEIROZ DEMONSTRA SELETIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO
Leonardo Sakamoto em 9/7/2020
“A decisão que transferiu Fabrício Queiroz para a prisão domiciliar é um exemplo dos piores defeitos do Poder Judiciário: seletividade e politização.” A avaliação foi feita à coluna por Eloísa Machado, professora da FGV Direito/SP e coordenadora do centro de pesquisa Supremo em Pauta.
“Seletividade porque o próprio presidente da corte negou uma série de habeas corpus, inclusive coletivo, para pessoas do grupo de risco, como idosos e portadores de doenças crônicas durante a pandemia”, afirma. “E politização porque essa seletividade parece estar orientada para agradar o governo Bolsonaro – o que tem sido comum das decisões de Noronha.”
O ministro João Otávio Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, decidiu, na quinta [9/7], a favor da defesa do policial aposentado e ex-assessor da família Bolsonaro, que está no presídio de Bangu. Sua prisão foi decretada em meio à investigação de desvios de recursos públicos no gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador, Flávio Bolsonaro. Durante o recesso do Judiciário, cabe ao presidente do STJ decidir sobre liminares.
Noronha concordou com a justificativa de que as condições de saúde de Queiroz, que operou de um câncer no intestino e estaria em tratamento médico, poderiam colocá-lo em risco em meio à pandemia de coronavírus. Não apenas isso, mas também aceitou que a esposa do assessor, Márcia Aguiar, que está foragida da Justiça, também se beneficiasse da decisão “por se presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias”. Ou seja, para que ela cuide dele.
Eloísa Machado lembra que, desde o início da pandemia, uma série de pedidos foi feito para transferência de presos para a prisão domiciliar a fim de evitar a explosão de mortes em presídios e casas de detenção. As ações consideraram como grupos de risco idosos, gestantes, pessoas com diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV, doenças crônicas imunossupressoras e respiratórias, entre outras. Muitas não foram aceitas.
Ela considera que “as péssimas condições de detenção para pessoas em grupo de risco é, neste momento, uma condenação à morte”. Para Machado, a Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) possibilita a substituição da prisão por outras medidas neste momento. A questão é que, segundo a jurista, isso tem funcionado para algumas pessoas, principalmente quem tem boas relações com o poder, mas não para outras – principalmente pobres e negros.
O próprio presidente da República se colocou contra a recomendação quando se tratava de outros cidadãos. “Eu, se depender de mim, não soltaria ninguém. Afinal de contas, estão muito mais protegidos dentro da cadeia, porque nós proibimos as visitas íntimas, proibimos as visitas também nos presídios, de modo que estão bem protegidos lá dentro”, disse Bolsonaro, em entrevista à RedeTV, em março.
Os ambientes prisionais e as unidades de internação brasileiras estão ocupados acima de sua capacidade, sem condições adequadas de ventilação, alimentação, repouso e tratamento a quem necessita de cuidados de saúde. Dados do próprio CNJ apontam que apenas 37% dos estabelecimentos prisionais têm instalações de saúde capazes de promover o cuidado básico das pessoas presas.
O presidente Jair Bolsonaro, que trouxe Queiroz para trabalhar na política e é seu amigo de longa data, “confessou” que sentiu pelo ministro Noronha “amor à primeira vista”, em um discurso em abril deste ano. “Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário”. Noronha é um dos cotados para assumir uma das duas vagas no Supremo Tribunal Federal que serão abertas neste ano e no próximo.
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