O QUE É ANTIFASCISMO. E QUAL A SUA CARA NO SÉCULO 21.
Donald Trump anunciou intenção de designar “antifas” como terroristas, e bolsonaristas reproduziram discurso. Movimento contra fascismo ganhou força com ascensão da extrema-direita.
Camilo Rocha, via Nexo Jornal em 3/6/2020
O presidente norte-americano Donald Trump afirmou no Twitter no domingo [31/6] que pretende classificar como organizações criminosas, sob acusação de terrorismo, os movimentos “antifa”, abreviação do antifascismo. Na visão do governo dos EUA, esses grupos estariam se aproveitando dos protestos contra racismo e brutalidade policial para praticar atos de vandalismo.
“Como esse tuíte demonstra, o terrorismo é um rótulo inerentemente político, facilmente abusado e mal utilizado”, afirmou Hina Shamsi, diretora da American Civil Liberties Union, ao jornal New York Times. “Não há autoridade legal para designar um grupo doméstico [como terrorista]. Qualquer designação desse tipo suscitaria preocupações significativas do processo devido e da Primeira Emenda.”
A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos garante liberdade de religião, expressão, associação política e o direito de organizar petições para fazer reivindicações ao governo.
O tuíte de Trump foi compartilhado pelo presidente Jair Bolsonaro no mesmo dia. Um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) afirmou na mesma rede social que “o Brasil deveria fazer o mesmo” que os Estados Unidos. “Antifas querem o caos. São o “braço armado” dos anarquistas: os black blocs”.
No Brasil, em diversas cidades do país, grupos de torcedores de futebol autodenominados antifascistas tinham saído às ruas no domingo [31/5] para protestar contra as ameaças de ruptura institucional do governo. Em São Paulo, houve tensão e confronto com a Polícia Militar.
As redes sociais então foram tomadas por posts e hashtags fazendo referência ao movimento antifascista no Brasil. Pessoas criaram imagens de perfil com o logotipo de duas bandeiras (uma preta e uma vermelha) tradicionalmente associado ao antifascismo. Muitos juntaram sua profissão ou categoria ao adjetivo “antifascista”.
Na segunda-feira [1º/6], o deputado federal Daniel Silveira (PSL/RJ) apresentou um projeto de lei que propõe alterar a Lei Antiterrorismo “a fim de tipificar os grupos “antifas” como organizações terroristas”. Silveira gravou um vídeo em que ameaçou esses grupos, dizendo que eles corriam risco de levar “um tiro na caixa do peito” de um policial durante uma manifestação.
Silveira é um ex-PM e ficou conhecido nacionalmente ao participar de um ato no Rio durante a eleição de 2018 no qual bolsonaristas quebraram uma placa com o nome da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada meses antes no centro do Rio – as principais suspeitas recaem sobre milícias armadas que atuam na cidade.
“Começou aqui com os antifas em campo. O motivo,no meu entender,
político, diferente [daquele dos protestos nos EUA].
São marginais, no meu entender, terroristas”.
Jair Bolsonaro, presidente da República, em gravação divulgada
por apoiadores na terça-feira [2/6]
A natureza do movimento antifa
Embora se fale muito da existência de um “movimento antifa”, não se trata de uma organização com estrutura, manifesto ou hierarquia.
Manifestantes que se declaram antifas, em geral, seguem ideologias de esquerda e apostam em ação política direta, tanto na internet quanto na rua. Rejeitam agremiações tradicionais e o sistema político estabelecido, sendo comum a presença de discursos e correntes anarquistas. Se opõem ao que consideram encarnações contemporâneas do fascismo, de supremacistas brancos a políticos de extrema-direita.
Segundo o historiador norte-americano Mark Bray, autor de Manual Antifascista, o antifa é um militante, envolvido em ações e campanhas. Segundo o autor, esse militante “existe no cruzamento de visões políticas de esquerda radicais e estratégias e táticas de ação direta que preferem não depender da polícia, da Justiça ou do Estado para barrar a extrema-direita”.
É comum que antifas se vistam de preto em protestos. Muitos empregam a tática black bloc, usando máscaras para evitar que seus rostos sejam vistos ou fotografados.
Historicamente, o antifascismo surgiu como frente de oposição a regimes totalitários europeus na primeira metade do século 20. No fim do século 20, militantes antifas se engajaram em uma ampla diversidade de causas, que vão da defesa de minorias contra racismo e homofobia a protestos antiglobalização.
As raízes históricas no comunismo
Movimentos antifascistas existem desde que existe o fascismo. A ideologia foi concretizada por Benito Mussolini, que chegou ao poder na Itália em 1922, via golpe de Estado. Imediatamente, surgiram grupos de tendência comunista e anarquista que se opunham ao autoritarismo, à centralização de poder e à violência política que caracterizaram o regime de Mussolini.
A contração antifa surgiu na década de 1930 na Alemanha. Era o apelido da Antifaschistische Aktion, uma organização ligada ao Partido Comunista da Alemanha. Esse grupo foi o primeiro a adotar o logotipo com as duas bandeiras dentro de um círculo, utilizado por indivíduos e grupos antifascistas até hoje.
No pós-Guerra, os antifascistas se dissociaram dos socialistas e comunistas, que se organizaram em partidos dentro do sistema político tradicional.
Nos anos 70 e 80, a movimentação antifascista ressurgiu em países europeus como Reino Unido e Alemanha como reação a grupos de extrema-direita que voltavam a ganhar relativa força. Os movimentos punk e pós-punk abrigaram muitos discursos e iniciativas antifascistas.
Mais recentemente, nos EUA, adeptos do discurso e práticas antifas se associaram a iniciativas como o Occupy, que protestou contra a desigualdade social, e o Black Lives Matter, mobilização que se opõe à violência pessoal contra pessoas negras.
A segunda metade da década de 2010 foi marcada pela disseminação de ideias e discursos ligados à extrema-direita, em especial nas redes sociais. O processo foi importante para a eleição de governos com posicionamentos extremistas como Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil. O crescimento da chamada “alt right”, termo que abrange grupos e pessoas com discursos nacionalistas, xenófobos e racistas, também fez a militância antifa ganhar força.
O antifascismo contemporâneo sob análise
Sobre o antifascismo, o Nexo conversou com Acácio Augusto, professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento).
O que caracteriza o movimento antifa? Existem diferenças entre sua atuação nos EUA e Brasil?
Acácio Augusto: O antifascismo poderia ser definido simplesmente como oposição ao fascismo, principalmente ao fascismo histórico. No entanto, essa oposição pura e simples não explica o que podemos chamar de “antifa contemporânea”. Poderíamos dizer que o antifascismo é um método político, um lócus de identificação, seja individual, seja de grupo, de um movimento espalhado por vários países, que de certa maneira adaptou as correntes anarquistas, socialistas e comunistas, historicamente opostas ao fascismo, às necessidades contemporâneas. Os grupos comumente chamados de antifas são, em geral, ligados a movimentos urbanos autônomos, antiautoritários, anarquistas e, em menor quantidade, comunistas, com alguma ligação com movimentos de contracultura, em especial o punk. Eles vão dizer que o fascismo não foi enterrado após a Segunda Guerra Mundial e propõem um combate cotidiano ao fascismo.
Na Europa e EUA, existem mais grupos assim e estabelecidos há mais tempo, mas em termos de atuação e métodos eles não se diferenciam muito dos brasileiros. A partir dos anos 80, quando esse tipo de grupo se espalha pelo mundo, essa antifa contemporânea também está ligada ao movimento punk e grupos de rua.
Um caso emblemático no Brasil foi quando os skinhead white power assassinaram um jovem gay na praça da República, Edson Néris, em 2000. Foi um grupo anarcopunk, chamado ACR (Anarquistas Contra o Racismo), que fez uma campanha de alerta contra essas gangues de extrema-direita.
Grupos e indivíduos que se identificam com essa tradição histórica anticapitalista e antiautoritária fazem o combate cotidiano ao fascismo produzindo material informativo e usando táticas para expor publicamente fascistas e nazistas. Alguns adotam táticas de autodefesa, que consiste no treinamento em lutas como boxe, jiu-jitsu e muay thai. Principalmente meninas, com o intuito de se defender de agressões.
Quais os equívocos mais comuns quando políticos falam em antifas?
Acácio Augusto: O erro mais comum, pensando em declarações como as de Trump e de Eduardo Bolsonaro, é associar os antifas contemporâneos ao terrorismo. Não é uma coisa nova, Trump já disse isso anteriormente. Primeiramente, a definição do terrorismo é elástica, nem existe consenso sobre o que seria no âmbito das relações internacionais. Mas uma definição enxuta seria “o uso da violência para atingir um determinado fim político”. Se você admite essa definição então o estado é que seria o maior terrorista da história.
É o mesmo discurso que se ouvia na época da Copa de 2014 em relação aos black blocs. Antifa é antes de mais nada uma forma de atuação, uma forma de identificação pessoal. Não é um grande grupo coordenado ou organizado por ninguém. E mesmo quando se tem grupos antifascistas, como a Rose City Antifa, dos EUA, são pequenos, geralmente de pessoas que se conhecem.
Outro erro é associar o antifascismo à prática da violência. Nem todos os grupos ou pessoas que se identificam como antifas entram em confronto físico com fascistas. É uma decisão que alguns tomam e se preparam para isso. Ao mesmo tempo, fica difícil lidar com grupos neonazistas, pessoas que pregam genocídio e eliminação de outras etnias ou minorias, sem estar preparado para enfrentar a violência. Quando usada por esses deputados, ou por figuras influentes como Steve Bannon, é uma retórica que visa a criminalização desses grupos.
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