Maria Cristina Fernandes, lido no Esquerda Caviar em 14/2/2016
“A corrupção está profundamente enraizada em diferentes áreas da administração pública, na sociedade civil e no setor privado. O pagamento de propina é uma prática comum na obtenção de licenças, em contratos públicos, em acordos financeiros, no acesso à universidade, no exercício da medicina, nas transações do futebol. A corrupção e um fenômeno invasivo e sistêmico, que afeta a sociedade como um todo.”
A Itália tinha desencadeado a Operação Mãos Limpas havia quase 20 anos, com a prisão de seis ex-primeiros-ministros, centenas de parlamentares e empresários quando o Grupo de Estados Contra a Corrupção, braço do Conselho da Europa, sediado em Estrasburgo, soltou, em 2009, o segundo balanço sobre o estado da arte da propina naquele país.
A Operação Lava-Jato ainda não fechou para balanço, mas, às vésperas de completar dois anos, seu comandante, o juiz Sérgio Moro, mostrou-se um aplicado seguidor da estratégia dissecada em seu artigo “Considerações sobre a Mani Pulite”: autorizou investigações que levaram a prisões e delações e, para enfrentar reações a ambas, cativou apoio da imprensa e da opinião pública.
Se o modelo importado trouxe êxitos, eventuais fracassos não custarão a ser debitados ao atavismo tupiniquim. Os desdobramentos da Mani Pulite deixam claro que é mais fácil prender políticos e empresários do que enraizar a transparência nas relações entre o público e o privado.
Uma das referências bibliográficas de Moro é o professor da Universidade de Pisa Alberto Vannucci. Estudioso da Mani Pulite, Vannucci tornou-se um de seus maiores críticos desde os escritos citados pelo juiz da Lava-Jato.
Em artigo publicado no ano passado (“Três paradigmas para o estudo da corrupção”), concluiu: “Regras oficiais só funcionam quando complementadas por instituições informais coerentes. O terreno fértil de qualquer reforma regulatória é um conjunto de iniciativas de baixo para cima, que empodere os cidadãos e os torne mais influentes junto aos agentes políticos para mudar as regras do jogo e tornar a regulação mais efetiva”.
Em outro artigo (“O controverso legado da Mãos Limpas: uma análise crítica da corrupção na Itália e das políticas anticorrupção”), Vannucci já havia traçado o mapa dos fracassos da operação que inspirou a Lava-Jato. Não está escrito em lugar algum que a história vai se repetir no Brasil, mas a leitura dispensa passaporte.
Vannucci descreve a Mãos Limpas como um processo de seleção natural. Quem foi capaz de sofisticar os meios de burlar os controles, sobreviveu. Os mais talentosos, na política e no meio empresarial, adaptaram-se ao novo risco embutido na atividade. Pseudoconsultorias se transformaram num vicejante mercado de canalização da propina.
A operação deu lugar ao que o autor chama de “governança da corrupção”. A atividade passou a ter uma coordenação mais experimentada, tanto nas empresas quanto nos partidos políticos. Para diminuir o risco, um e outro deixaram de disputar a céu aberto. Mais estreitamente vinculadas a esse ou àquele partido, as empresas deixaram de se queixar dos leilões de propina. O resultado dessa colaboração mais estreita é que, a despeito de evidências generalizadas de corrupção, sumiram as denúncias.
A diminuição da competição nesse mercado inflacionou os custos da corrupção: “A multiplicação e a sobreposição dos mecanismos de controle aumentou o valor das propinas que tinham que ser pagas para evitar ou neutralizar esses controles”.
Com meios mais sofisticados, gestão mais experiente e centralizadora e propina inflacionada, o mercado da corrupção ganhou códigos de comportamento setorizados. O suborno das intervenções urbanas passou a ter uma regulamentação distinta, por exemplo, daquele pago no licenciamento ambiental.
A governança da corrupção resistiu à adesão da Itália a pelo menos sete tratados internacionais de combate à corrupção. A condição de signatária desses acordos, a maior parte deles surgida a partir do escopo regulatório dos Estados Unidos, não impediu uma das maiores empresas italianas, a Parmalat, de montar uma fraude com o beneplácito de um banco (Bank of America) e uma auditoria (Grant Thornton) norte-americanos.
Dez anos depois de deflagrada a Mãos Limpas, descobriu-se que o grupo empresarial, que tinha subsidiárias em 30 países dos seis continentes, informava em seu balanço fundos fictícios no Bank of America que encobriam repasses a acionistas e a uma rede de colaboradores que facilitavam evasão de impostos e benefícios fiscais. O esquema funcionou por mais de uma década, lesou milhares de acionistas e provocou um rombo bilionário.
Paralelamente à sofisticação do mercado de propina, a Itália viu surgirem efeitos indesejados de uma reforma política movida pela ilusão de que sistemas eleitorais filtram caráter e não voto. Partidos viraram fumaça, o financiamento passou a ser dirigido a carreiras individuais e o tecido político se esfacelou com a eleição de Berlusconi, que privatizou o Estado para seus interesses.
O principal magistrado da operação, Antônio di Pietro, se transformaria em ministro da Infraestrutura no gabinete Romano Prodi. Perseguido por Sílvio Berlusconi, seria inocentado pela Justiça. Depois de jurar que jamais entraria na política, acabou fundando seu partido (Itália dos Valores), pelo qual elegeu-se senador e, em seguida, deputado. Depois de enfrentar novas denúncias de financiamento eleitoral, deixou o partido e se tornou um parlamentar independente.
A economia italiana custaria a se recuperar da Mãos Limpas. O PIB do país voltou a crescer, mas com a 19ª taxa da zona do euro. Em meio ao fortalecimento dos extremos, Beppe Grillo e Liga Lombarda, a Itália já passou por seis gabinetes desde a operação. O atual primeiro-ministro, Matteo Renzi, um ex-prefeito de Florença do Partido Democrata, de centro-esquerda, empreendeu nova reforma do sistema político para diminuir sua fragmentação, reduziu impostos e cortou gastos na tentativa de atrair investimentos.
Numa entrevista recente ao L’Humanité, o escritor Umberto Eco relembrou os anos da Mani Pulite: “Fiquei excitado. Seguia tudo na televisão. Víamos os poderosos da época tremer. Foi um grande espetáculo. Foi também a época em que começamos a compreender que os socialistas do PSI de Bettino Craxi exageraram na sua sede de poder. Ficamos mais ou menos contentes. Acreditamos que acabaríamos com a corrupção, mas ficou pior. Naquela época, se roubava para os partidos. Hoje se rouba para si mesmo. É o que Zygmunt Bauman chamou de a ‘sociedade líquida’. Não há mais ideologia, nem estruturas coletivas com as quais é possível se identificar. Cada um quer, acima de tudo, parecer”.
Ao comentar o governo Renzi, Eco resumiu os efeitos políticos da Mãos Limpas para a geração que debutava na vida cívica do país àquela época: “Pode-se ou não estar de acordo, mas ele imprimiu à vida política italiana um ritmo diferente. Introduziu a rapidez […]. Nessa velocidade, se comete todo tipo de erro, mas ele mudou algo. Renovou a classe dirigente”.
Depois de 23 anos da Mãos Limpas, Eco lançou Número Zero (Record, 2015), romance ambientado naquele eletrizante 1992. É uma paródia de teorias conspiracionistas que movem a imprensa, o Judiciário e a vida das pessoas.
Ambientado numa redação de jornal, criado para ameaçar e extorquir gente envolvida em escândalos, o romance é permeado por conspirações que moveram a Mãos Limpas e, aqui e ali, encontram guarida na Lava-Jato. Pela voz do diretor de redação, reedita a do imperialismo ianque: “Há quem diga que, depois da queda do Muro de Berlim e do desmantelamento da União Soviética, os norte-americanos já não precisam dos partidos que podiam manobrar e os deixaram nas mãos dos magistrados, ou, talvez, poderíamos arriscar, os magistrados estão seguindo um roteiro escrito pelos serviços secretos norte-americanos”.
Pela voz de um de seus personagens, Eco mostra como está longe a sociedade idealizada por Alberto Vannucci, em que pressões de baixo criariam as condições para que as normas anticorrupção se incorporem à cultura política: “A única preocupação de cidadãos decentes é como evitar pagar impostos”. Ao revelar sua disposição de deixar o país, a personagem ouve do namorado, um jornalista chantageador, o vaticínio preconceituoso do que a Itália pós-Mãos Limpas corria o risco de virar. “ A Itália está se transformando num paraíso do qual você quer ser banida. Quando nosso país finalmente se juntar ao Terceiro Mundo, a vida vai ficar mais fácil”.
Resenhista de Número Zero para o New York Times, o escritor Tom Rachman diz que, quando chegou à Itália para trabalhar como jornalista, uma década depois de finda a Mãos Limpas, espantou-se ao descobrir que, para algumas pessoas, os vilões daquela história eram os magistrados e não aqueles alvejados pelas denúncias.
Foi isso que explicou, em parte, a popularidade desfrutada por Berlusconi, que vivia em guerra aberta contra o Judiciário. Na Itália, diz Rachman, não se espere dos escândalos de corrupção atos de contrição ou resignação. “É um país em que os escândalos bifurcam a história, com linhas paralelas que nunca se cruzam, culpas não assumidas, rompimentos nunca concretizados e pouca regeneração como resultado”.
Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor.
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