Pesquisa expõe elitismo da formação em Saúde no país e escancara impasse do SUS: sistema buscou estabelecer atendimento para todos, mas assumiu distorções da Medicina privatizada.
Bruna Silveira, via Brasil de Fato em 29/6/2015
O The New England Journal of Medicine, a mais antiga e uma das mais prestigiadas publicações científicas da área da saúde, divulgou o artigo de James Macinko e Matthew J. Harris sobre a Estratégia de Saúde da Família (ESF) brasileira.
Apesar de escancarar as principais falhas e contradições do sistema, o texto, publicado no último 4 de junho, pontua avanços do Sistema Único de Saúde (SUS), fala sobre o Programa Mais Médicos Para o Brasil, destaca o uso extensivo e eficaz dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e conclui: “o mundo pode aprender algumas lições da experiência brasileira”.
Os elogios ao SUS e ao Mais Médicos, além de um horizonte de esperança para uma saúde pública de qualidade, foram suficientes para desencadear uma furiosa reação de grande parte da categoria médica brasileira contra a revista científica inglesa nas redes sociais. Além de bradarem que o artigo é mentiroso, alguns médicos acusam os autores e o jornal de terem sido comprados pelo governo brasileiro.
Uma forte polarização e um clima de intolerância têm tomado conta do cenário político. Nem mesmo as ações mais bem-sucedidas do governo merecem qualquer reconhecimento aos olhos de seus opositores. Isso se evidencia, com muita força, nas disputas políticas enfrentadas dentro da área da saúde nos últimos anos.
O SUS é fruto do movimento pela reforma sanitária e da luta pelos direitos de um povo até então negligenciado. Uma das principais perdas políticas à época de sua construção, no entanto, foi a aprovação do artigo 199 da Constituição Federal, referente ao SUS, que vigora até hoje: “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada”.
É por isso que, apesar de haver dois setores bem distintos (público x privado), o SUS se denomina como um sistema “único” de saúde. Mas é desse ponto que se originam muitas das contradições desse sistema, e é exatamente de onde emerge todo esse incômodo da categoria médica.
Dados
O estudo “Demografia Médica do Brasil”, desenvolvido em parceria pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), de fevereiro de 2013, aponta que o Brasil já conta com quase 400 mil médicos em atividade. Com esse número, o país poderia atingir uma taxa de dois profissionais por 1 mil habitantes. No entanto, essa não é a realidade. Apesar de crescer de forma acelerada e constante, a população médica brasileira é mal distribuída pelo país e dentro das especialidades, com forte inserção no setor privado.
Seguem alguns dados importantes do estudo:
1) Há quatro vezes mais médicos no setor privado do que no setor público;
2) Dentre os 387.736 profissionais em atividade no país, 53,68% são especialistas e 46,32% não têm nenhum título de especialista;
3) Os especialistas em Atenção Primária à Saúde (APS) correspondem a apenas 1,21% de todos os especialistas. Em número absoluto são apenas 3.253 médicos com título em Medicina de Família e Comunidade, enquanto, por exemplo, a Anestesiologia conta com mais de 18 mil profissionais, a Radiologia com quase 8 mil, a Dermatologia com quase 6 mil e a Cirurgia Plástica com quase 5 mil.
4) Do total de médicos ativos no país, a região Sudeste tem 2,61 profissionais para cada 1 mil habitantes, enquanto o Norte do país tem menos de um (0,98) para cada 1 mil habitantes. Essa situação ainda é agravada pela concentração de profissionais nas capitais ou polos de grande porte. Enquanto a cidade de São Paulo tem 4,33 médicos por 1 mil habitantes, o estado de São Paulo tem 2,58.
O levantamento conclui que o Brasil é um país marcado pela desigualdade no que se refere ao acesso à assistência médica. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou outro estudo em julho de 2013 informando que medicina é a carreira que tem o melhor desempenho trabalhista no Brasil, sendo que, das carreiras analisadas, é a que tem mais escassez de mão de obra.
Assim, foi no intuito de reduzir essas desigualdades, que o Programa Mais Médicos foi criado. Todos os médicos que vieram pelo programa, formados em outros países, são especialistas em Atenção Primária à Saúde – ou seja, têm formação na especialidade correspondente em seu país a Medicina de Família e Comunidade. Esses médicos têm um contrato de intercâmbio de três anos, recebem formação semanalmente pela Universidade Aberta do SUS (Unasus) e são supervisionados periodicamente.
Outros países
Segundo o artigo do The New England Journal of Medicine, “a evidência sugere que as equipes de saúde da família e a Estratégia de Saúde da Família proporcionam um melhor acesso e com mais qualidade, e resultam em maior satisfação do usuário do que os postos e centros de saúde tradicionais ou até mesmo algumas unidades de cuidado de saúde do setor privado”.
Enquanto em outros países os profissionais de saúde têm um comprometimento ético e social com as demandas da população e a saúde é realmente um direito e uma questão de seguridade social, no Brasil, a saúde é tratada como mercadoria e a profissão médica é tratada como um bom negócio. No Canadá, por exemplo, o governo regula as vagas de residência (especialização) médica de acordo com as necessidades da população e, portanto, quase metade dos médicos são especialistas em Atenção Primária à Saúde.
No projeto inicial do Programa Mais Médicos, constava uma proposta de regulação das vagas de residência médica semelhante à do Canadá. Porém, essa proposta foi vetada por pressão da categoria médica e essa questão, que é de interesse social, continua reduzida às leis de mercado.
É certo que especialidades como dermatologia, cirurgia plástica, radiologia e anestesiologia são fundamentais e imprescindíveis à composição do sistema de saúde, não sendo possível afirmar que uma especialidade é mais importante que a outra. Mas é no mínimo curioso que a maioria dos profissionais se interessem mais por essas áreas de maior remuneração no setor privado, ao passo que há tão pouco interesse na área de Medicina de Família e Comunidade.
De qualquer modo, o Mais Médicos prevê a ampliação e a universalização da residência médica, e uma formação médica voltada às necessidades do povo brasileiro.
SUS
Os princípios norteadores do SUS são a universalidade, a equidade e a integralidade. Esses princípios garantem a toda população (inclusive a estrangeiros que estejam de passagem pelo país) o acesso universal e irrestrito ao sistema de saúde, bem como busca diminuir as desigualdades e disparidades e garante atendimento integral aos usuários (da promoção e prevenção à resolução das questões de saúde).
De fato, o SUS ainda tem muitas questões a melhorar, como o próprio artigo da revista científica inglesa aponta, principalmente no que se refere aos desafios financeiros e organizacionais. Embora a despesa total em saúde no Brasil seja semelhante à média de cerca de 9% do produto interno bruto (PIB) encontrada entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), menos da metade deste montante provém de fontes públicas – uma proporção que coloca o Brasil muito abaixo da média da OCDE na participação do governo dos gastos com saúde.
Ainda assim, o artigo aponta que o Brasil tem feito rápidos progressos rumo à cobertura universal da população. Os medicamentos mais comuns são universalmente acessíveis e gratuitos em muitos locais de atendimento para todas as cidadãs e todos os cidadãos – mesmo aqueles 26% da população inscritos em planos de saúde privados. Das lições que o mundo pode aprender com a experiência brasileira, o artigo cita que os cuidados primários com base na comunidade podem funcionar, se feitos corretamente.
Ao final, o artigo faz um importante alerta: “o futuro da estratégia de saúde da família do Brasil, sua expansão sustentada para os demais centros urbanos e para o acesso da categoria média, e sua integração efetiva na atenção secundária e terciária exigirá engajamento dos prestadores de cuidados de saúde e continuidade dos investimentos públicos financeiros, técnicos e intelectuais – todos os quais, em última instância, dependem de apoio político.”
Para que esse apoio político se concretize dentro da categoria médica, é fundamental que a medicina deixe de ser uma profissão tão elitizada e, para tal, é preciso, dentre outras ações, democratizar o acesso ao ensino médico e retomar a proposta de universalização e regulação das vagas de residência médica de acordo com as necessidades sociais. Além disso, são imprescindíveis os trabalhos de organização e mobilização dos usuários do SUS.
Bruna Silveira é médica de Família e Comunidade.
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14 de julho de 2015 às 1:33
Vá o governo estabelecer algo semelhante ao modelo canadense, e as entidades médicas berrarão, propagadas pela imprensa corporativa: Comunismo. Ditadura. Estranho país é o nosso. Temos o que mostrar lá fora em muitos setores; em alguns somos apresentados como modelos. Mas isso não nos dá orgulho, a imprensa não noticia, os ignorantes afirmam que o governo comprou. Somos vira-latas ou, simplesmente, não conhecemos nosso país? Ou somos estrangeiros em nossa terra, aguardando descobrir, no Brasil, a árvore das patacas, para, então, regressar à nossa santa terrinha?